Texto curatorial
Taciana Lamego
A argila também será, para muitas almas, um tema de devaneios sem fim. O homem se perguntará indefinidamente de que lama, de que argila ele é feito. Pois para criar sempre é preciso uma argila, uma matéria plástica, uma matéria ambígua onde vêm unir-se a terra e a água. (BACHELARD, 2018)
“Na Biologia, metamorfose é um processo que implica em grandes mudanças físicas de um ser vivo. Um bicho que se metamorfoseia altera sua forma, sua natureza, suas funções. A lagarta se transforma em borboleta, o girino em sapo, a salamandra sai da água para a terra transformando brânquias em pulmões. Numa metamorfose, é natural que o comportamento destes seres sofra alterações, modificando inclusive (e quiçá, antagonizando Kafka), o seu caráter. E é nesse sentido de transformar tanto corpo quanto espírito, é nesse tempo intersticial do gerúndio desta transformação onde pretende se inserir o atual trabalho da jovem artista Geovana Côrtes.
Geovana é dotada de uma firmeza metodológica e incansável dedicação investigativa. Sua força reside na constante indagação das suas próprias perguntas, muitas delas já elucidadas intuitivamente, mas ainda assim levadas a cabo em processos de buscas das possibilidades de respostas. Tendo nascido e passado sua infância e adolescência no interior da Bahia, sua relação com esse território permeia toda sua poética e gera um polo motriz para sua relação com as materialidades dos elementos terra, água, fogo e ar, encontrando no barro a síntese de todos eles. Num primeiro momento, é notável a extensa paleta de marrons, vermelhos e sépias que pontuam as obras. Na sua investigação de pigmentos naturais, Geovana transita por um extenso fluir (perder-se e re-encontrar-se) nesses longos e quase infinitos tons terrosos. Com um rigor científico e curiosidade alquimista, do(s) barro(s) da Chapada Diamantina a artista extrai suas cores e estas então convertem-se em linguagem, em tema, em reflexão, em poesia. Mas o barro chama ainda para uma infinitude de outras materialidades, num caminho árduo que a artista trilha com passos firmes numa busca por aprofundar suas reflexões sobre a confluência com a matéria.
Numa segunda instância, cabe transitar pelos diferentes outros contextos de sua produção, aqui apresentada em 6 obras decorrentes de sua pesquisa de mestrado na Escola de Belas Artes da UFBA, no qual marca um forte questionamento da materialidade do sonho: “Qual a substância do sonho? Qual é o tempo do sonho? Qual é o espaço do sonho?”. E é nessa impulsão por libertar-se do ser e permitir o devir, ela se deixa penetrar atenta num espaço onírico, distante (entretanto real), onde encontra seu segredo intrínseco a desvelar e pensar a relação existente entre (seu) corpo, o barro e o terceiro elemento factível a surgir dessa confluência.
Ao entender e ler corpo como território e ler barro (veículo de materialidade) como percurso e resultado, são criadas aquarelas (pigmentos desenvolvidos pela artista), esculturas, telas e instalações nas quais essas novas existências se tornam, se (e nos) transformam. Com a sagacidade (e coragem) de se permitir envolver pelo difícil espaço unificado entre o singelo e o complexo, suas pinceladas são realizadas com persistência laboratorial, decantando seus pigmentos colhidos a partir de amostras do terroso chão de sua terra natal. A pintura em papel é cuidadosa e parece pretender-se infinita: ela é multiplicada em duas, três, quatro, cinco. Em mil silêncios. O silêncio que se repete e se multiplica, mas nunca se desmancha no nada.
A pesquisa escultórica de Geovana se revela como o momento de permitir que as mãos sejam cérebro e a argila seja corpo. Há uma intrigante obstinação no tratamento da linha como elemento central da obra bidimensional (horizonte, rio, onda, nervos, etc.) pulverizada na antropização da obra tridimensional (ser-morro, de 2023 e ser-fruto / urucum, de 2024): fendas, ondulações, curvas, retas e círculos. A sensualidade perpassa a temática escultórica de uma forma natural, carnal, sem pretensões de desencadear uma narrativa engajada, manifesta. É a carne como carne, vinda do barro em sua gênesis.
As obras, mesmo em seus diferentes substratos, mantêm uma coesão plástica e sensitiva. As cores uniformizam os diálogos entre as peças, amigas destes e de outros tempos. É possível verificar num olhar instantâneo os elementos essências que perfazem e moldam as experiências e a prática artística apresentada. Um olhar que permite mil significados, infinitas formas de permanências. Sonhar e criar andam neste mesmo chão, sempre de mãos dadas. E quando neste sonho há silencio, ele não é apenas um. Tudo é preenchido e interpenetrável neste território imaginável de um devir, de um bicho metamorfoseante”.
Exposição bicho metamorfoseante na A Galeria, Ativa Atelier Livre em Salvador, setembro de 2024
sem título, 2023. Argila em pó e óleo sobre tela
sem título, 2024. Cerâmica sobre terra
ser-fruto / urucum, 2024. Cerâmica
mil silêncios e nenhum vazio, 2023. Cerâmica e aquarela natural sobre papel, instalação
ser-morro, 2023. Cerâmica sobre terra
cartas ao vento, 2023-2024. Aquarela natural sobre papel algodão
Fotografias: Victor Mota